Dizer que vivemos uma vida de aparências já se tornou um chavão e o perigo dos chavões é que, junto com eles, desgastam-se também as verdades que carregam. Banalizam-se, assim, fatos frente aos quais deveríamos nos indignar e tecer reflexões diariamente, tais como a violência urbana, a corrupção nos altos escalões governamentais, a exclusão das minorias, a insensatez estética, entre outros.

Dia desses, eu estava lendo sobre pessoas que tiveram seus rostos desfigurados em acidentes e pensei naquelas outras pessoas que, mesmo sem ter sofrido acidente algum, por conta própria se descaracterizam, desfigurando-se fisicamente ao se submeterem, de maneira desmedida e imprudente, a procedimentos estéticos, cirurgias plásticas, aplicação de preenchimentos, silicones, próteses. Muitas vezes, enfrentam a morte em clínicas clandestinas, por conta da vaidade, mas acabam perdendo a luta, como em tantos casos veiculados nos recentes noticiários.

E, pensando naquelas histórias das pessoas cujas vidas foram quase interrompidas por fatalidades que destruíram, abrupta e violentamente, suas feições, retirando delas aquilo que lhes ajudava a dizer quem eram todas as manhãs, em frente ao espelho, refleti sobre as aparências, tão valorizadas e tão maquiadas ultimamente. Afinal, ao nos preocuparmos demais com a superficialidade visível do que nos diz respeito, as aparências físicas e materiais passam a ser os nossos bem mais preciosos.

Daí decorre a obsessão pelo corpo sarado e enxuto, bem como a busca pela perfeição em todos os setores materiais da vida. A lógica, nesse contexto, é transparecer – mesmo que não se vivencie – beleza, êxito financeiro, vigor físico, fidelidade, paixão eterna, filhos perfeitos, jardins e quintais nababescos, viagens dos sonhos, dentes brancos como a neve, principalmente nas redes e colunas sociais.

E, para se alcançarem esses modelos de corpo, cabelo, pele e crediário (essa busca requer muito investimento), gastam-se horas estafantes divididas entre as academias, as clínicas e o trabalho, o que faz surgirem cada vez mais pessoas especialistas em dietas, mas esvaziadas de conteúdo concernente a tudo o que existe além dos exercícios, das consultas e dos escritórios.

Então, eu acabei refletindo sobre os casos em que a vida – essa pregadora de peças incurável, fonte inesgotável de imprevistos – resolve nos colocar como protagonistas de alguma situação que implique a deformação de nosso rosto, ou nossa ruína financeira, nossa ruína emocional. A que nos apegarmos quando desses reveses que avassalam tudo o que parecíamos ter, deter, reter e controlar? Quando a vida leva embora quem tanto amamos?

Nesses casos, creio que teremos que mostrar ao mundo aquilo que se escondia sob nossa materialidade visível, pois será isso o que a vida nos estará cobrando – essa cobrança é inevitável, de uma ou de outra forma. Não tem outro jeito: quando adentrarmos essas escuridões que assolam a nossa vida, o que nos resgatará e salvará é imaterial, imperscrutável e imensurável, algo que as fotos não captam, que os murais virtuais não revelam, que não rende na poupança, algo que ninguém consegue ver: nossa fé, nossa bagagem sentimental, nossa memória afetiva, o entrelaçar sincero das nossas mãos às do companheiro, o aprendizado adquirido desde o parquinho, na escola e além de seus muros, nos bancos do catecismo, nas conversas com nossos familiares e amigos, nas leituras da obras e do mundo, ou seja, nas trocas e interações que nos permitimos em nosso viver.

Teremos, então, de recorrer à nossa força interior, avolumada pela qualidade das relações que cultivamos, pela quantidade de alegrias que compartilhamos, pelos resultados de nossas ações para com os outros, pelo tipo de energia acumulada em nossos pensamentos, pelo tanto de afeto que carregamos em nossos corações.

Não podemos, pois, viver à revelia dos nossos sentidos e dos sentimentos daqueles que nos circundam. Nosso caminhar requer prestar atenção no que está além e fora de nós, requer ajudar e ser ajudado, entregar e entregar-se – viver é conjunto, é coletivo, é troca. Estruturarmos nosso eu sobre elementos fúteis e egoístas poderá até nos trazer prazeres frugais, conforto material e álbuns virtuais pomposos, mas nada disso irá nos sustentar a alma nos momentos de tempestades e tsunamis emocionais, quando tivermos que ser mais fortes do que nossas tragédias pessoais. O que nos salva mesmo é o amor. É só amando que a gente continua. E fim.